27 de junho de 2007

Comunidades da Linha Ouro Preto do Oeste, Rondônia

“Tantas vezes pensamos ter chegado. Tantas vezes é preciso ir além”.
Fernando Pessoa

Terra da Madeira Marmoré, nunca pensei ficar tão impressionada ao chegar em uma capital brasileira. Uma névoa densa de fumaça cobria toda a cidade. T-o-d-i-n-h-a. “Queimada de derrubada ou de pasto”, explica seu Batatinha, motorista que nos trouxe do aeroporto ao hotel. Diante do meu espanto acrescenta: “Estamos na época da seca, onde podemos queimar. A partir de novembro começa a chover e tudo isso passa”. Porto Velho é assim toda branca nestes dias, me debruço nas margens do Rio Madeira tentando ver a outra margem, em vão.

Achei mesmo que a fumaça que encobria a capital do estado limitar-se-ia a isso, como se “isso” não fosse muita, muita fumaça, sinal de muito, muito fogo. Descemos a BR 364, esta gigante que vem lá de Cruzeiro do Sul no Acre até Cuiabá no Mato Grosso. Atravessamos mais da metade do estado para chegar em Ouro Preto do Oeste, e durante todo este trajeto, ardência nos olhos que tentam enxergar a paisagem. A beleza aqui é casada com a tristeza, e essa viagem mudou a minha vida para sempre, irremediavelmente. Imensos campos queimados, castanheiras solitárias crucificadas no horizonte enevoado. Todo dia que trabalhamos por lá o sol apocalíptico nunca chegou no chão, bola branca no céu. A fumaça nunca se desfez. O calor foi de matar. Rondônia, de braços dados com Mato Grosso (onde se estendem quilômetros e quilômetros de campos verdes de soja) é campeã de desmatamento no Brasil.

Seria terça ou quarta ou segunda de uma semana que se perde nos dias que se misturam. Na névoa tudo vira névoa. Amanhecemos invariavelmente com o pé na estrada, caindo no poeirão da linha 203, toda dividida em lotes - hoje esturricados – pelo Incra em meados dos anos 80 aos aventureiros que vieram do sul. Rondônia tem mineiro, mato grossense, paranaense, até paulista, gaúcho e catarinense. Tudo menos rondoniense. Estes se resumem às crianças. Todas essas pessoas vieram de todas as direções até chegarem aqui e não têm medo de andar. Casais que enfrentaram a floresta, a falta de acesso e muitas outras dificuldades. Um povo cheio de história, que se lembra com saudades da mata, dos esturros de onça, dos gritos dos macacos impacientes, dos frutos suculentos e das sombras generosas; nada disso existe mais. Em meados dos anos 80 Ouro Preto não era senão uma vila esquecida no mundo, conta Marísia, que fugiu de casa aos 16 anos e veio tentar a vida aqui com um homem 27 anos mais velho do que ela. Seringa e madeira eram os negócios da época. A madeira era vendida em toras gigantescas a preços irrisórios. Aproveitavam-se apenas os imensos troncos principais, o resto era abandonado na floresta, restos estes que os madeireiros voltam hoje para buscar. Não raro assistimos a passagem de caminhões com um perfume misterioso, dói o coração ver toras imensas sendo transportadas para o nosso rico sudeste. Pergunto sempre se acham que a vida hoje está melhor ou pior. São unânimes em responder que melhorou muito por um lado – agora comunicam-se com mais facilidade uns com os outros, as distâncias estão menores, vez por outra passa um ônibus vindo de outro mundo, é possível ir à cidade, telefone mais próximo, luz elétrica e rádios que contam histórias deles e de todos os lugares. Piorou a alimentação, que antes era abundante, na floresta tudo dava e tinha muita caça. E o frescor, que saudades do frescor. Com a blusa colada no corpo, olho a fumaça e penso que essas pessoas ainda aproveitaram bem a nossa floresta. Tiraram tudo o que podiam pois assim exigia a economia, queimaram e fizeram pasto, lindo progresso racionalista empirista. Faz pena são as crianças, essas que nunca viram nem verão o mundo como outrora, estas cujos olhos brilham ao verem no cinema as imagens de outras brincando na floresta, sem nem sequer imaginar que poderiam estar ali, hoje mesmo. Faz pena, muita pena às vezes. Vai ser besta prá lá. Ô vida triste.

Entende-se assim a história de tantos jovens que vão tentar a vida no exterior. Pagam dez mil DÓLARES, dinheiro suadíssimo no pasto, (5,00 o kilo da picanha, 0,30 o litro de leite) ao coiote, homem milagroso que os leva, Deus sabe como, deste lugar a outro. Valem caminhões, travessias a pé, passar fome e sede, caixas, caminhões, qualquer coisa para se chegar lá, no paraíso do consumo e muitas vezes não chegar, com sorte voltar. Acho a novela da Globo, América, de repente tão atual! Pelo visto funciona: Ouro Preto tem sua economia girando nas altas e baixas do dólar!

Conhecer os prefeitos destas terras sempre me deixa doente. Doença moral, pior do que qualquer outra. Este aqui foi cassado pelo ministério público, comprou a liminar e voltou a seu posto. Prática comum! Como resultado de uma emboscada que sofreu quando ganhou as eleições, manca e exibe uma grande cicatriz no rosto. Considerado advogado, defendia amigos deputados no tribunal com causas duvidosas. Foram ver, não tinha diploma!

Visitamos a APA, Associação dos Produtores Alternativos. Um trabalho pequeno mas maravilhoso, deu pra soltar um suspiro de alívio, finalmente. Beneficia diretamente 200 famílias, indiretamente 600. Um povo simples, que agregou muitos outros valores além do econômico, valores sociais, ambientais e humanitários. É lindo ouvir um pequeno agricultor, que neste aspecto é gigante, discorrer sobre a qualidade de sua pequena plantação, da importância da preservação do seu espaço, da complexidade de um sistema agro florestal em relação à monocultura, da saúde de seus produtos sem agrotóxicos que não envenenam a terra, a deixam respirar e ser produtiva por muitos anos, para seus filhos e netos.

Dona Maria Joana usava uma camiseta com a foto de um homem moreno e altivo, me lembrou Che Guevara. Dizia em letras vermelhas: “O teu sangue anima a nossa luta”. Tratava-se do Pde. Ezequiel Ramin, assassinado em julho de 85. Foi mediador dos donos de terra, madeireiros, seringueiros e pequenos agricultores, defendendo veementemente os mesmos. São muitos os Che Guevaras nestas terras, muitos anônimos Chico Mendes que nunca ouvimos falar.

Entre os longos caminhos de Rondônia e Tocantins, a hora foi curta, tive um blackout e não vi mais nada deste mundo. Parei em Brasília, o médico não encontrou nada além de cansaço da vida, e eu sempre soube o que me derruba: dor na máquina que funciona embaixo do peito.

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