27 de junho de 2007

Comunidades Rurais de Macapá - Amapá



O sol aqui arde bem cedo, faz com que as crianças pulem da cama feito pipocas. Macapá, à luz do dia, é diferente de outras capitais amazônidas: não é ostensiva, não tenta ser metrópole, sem edifícios nem shopping centers. Feiras de rua vendendo frutas e remédios misteriosos, para todos os males da humanidade, as ruas sem calçadas, as casas interioranas bem abertas, barulho enlouquecedor por todos os lados, carros desordenados, uma cidade que mostra a fronteira do país, a todo momento temos que mostrar os documentos dizendo em alto e bom tom quem achamos que somos. O Amapá, antes de ser estado (1988) era apenas território da União, como Rondônia e Roraima. Mas diferente de Rondônia, as pessoas estão aqui há muito, muito tempo, sem se importar se era um Estado ou um pedaço de chão. Os que antes aqui não estavam, vieram brigar com os franceses o direito a mais um pouco de terra, tendo nos olhos o brilho dourado da esperança de enriquecer rápido, mas ficando por aqui por puro encantamento.

O trapiche abre-nos a vista para o Rio Amazonas, gigante em movimento, cuja outra margem nem sabemos ao certo se existe. Uma estátua de São José, padroeiro da cidade, protege seus habitantes do resto do mundo inteiro, pois todos podem navegar até aqui, de um jeito ou de outro.

É a única capital do Brasil cortada pela linha do Equador. Essa linha imaginária divide a cidade em dois, e passa no centro do campo de futebol no estádio, fazendo com que os jogadores, em uma partida, troquem de hemisfério exaustivamente. De um lado do campo a água na pia do ralo gira para um lado, de outro, o inverso. Num ataque de bobeira cruzei essa linha várias vezes e me diverti beijando crianças do outro lado do planeta.

Viajando em direção ao campo, passo em muitos locais sem floresta, parecemos fugitivos no deserto, correndo a toda velocidade com cabelo no vento, levantando uma poeira senil atrás de nós. São kilômetros e kilômetros de areia maldita sob um sol escaldante. “O sertão está em toda parte”, já dizia Guimarães Rosa. São pastos, plantações, reservas de areia, de eucalipto, de pinho, todo tipo de matéria prima para todo tipo de utilidade irrelevante.

Quando a estrada finalmente atravessa um trecho de floresta madura, em pé, perdemos o semblante de alucinação, andamos mais devagar porque o mundo é melhor, ficamos bem humildes diante das poses senhoriais das árvores e da densidade do verde. O Amapá tem 51% de sua área protegida, fora as terras indígenas, o que faz deste o estado brasileiro menos desmatado na região. De qualquer forma, essa área toda está mais para o outro lado, não aqui onde estou. Aqui são 200 km de estrada, com impressão de não se estar indo a lugar algum. Adoro viajar de ônibus, sempre gostei, mas não sou mulher pra viajar sozinha de mochila nas costas em terras distantes, fico desconfiada. Em uma parada de ônibus, uma casinha no meio do nada, as pessoas tomam suco em saquinho de supermercado com um canudinho espetado no meio, depois jogam tudo no chão. Me oferecem e me falta coragem, me sinto ridícula com a garrafinha de água mineral nas mãos, me envergonho dos meus gestos do sul.

A comunidade onde trabalhamos chama-se Corre Água. É uma comunidade que surgiu na beira da estrada, da beira da estrada e para a beira da estrada, diferente das comunidades tradicionais que imaginamos cobrir toda Amazônia. Estas beiradeiras são muitas em todos os estados do Norte. A estrada passa no meio, tudo o mais gira em torno dela: a escola, o mercadinho, as crianças. Por conta disso, os moradores fitam sempre o horizonte, observam quem vem e quem vai. Para eles, somos mais uma turma dos mesmos que só passam, quase não acreditam que meu destino de viagem é aqui mesmo sim senhor. Escutam as histórias do mundo e as suas próprias são tristes, porque esqueceram de onde vieram e porque estão aqui. Para disfarçar, agregam vidas de outros lugares.

Por todo canto há costume das casas de palafita, longe das águas, da lama, dos bichos do chão, suspensa nos ares e sem paredes. Aqui, essas casas não servem mais, não são seguras o suficiente para o encontro inevitável com o pior de todos os perigos da natureza, nem sempre gentis e bem intencionados: viajantes. Estamos no caminho de tudo: da maior pororoca do Brasil, e de outras menores, mas cada qual tendo como guardiã a cabeça de uma cobra grande com olhos de sangue. Também no caminho para Calçoene, cujas praias são descomunais e com um excesso inexplicável de areia branca. Também estamos no caminho para Caiena, onde o salário mínimo tem um zero a mais, o asfalto é liso como um lago brilhante e a passagem para Paris, seja lá onde for, custa apenas 500 reais. Nesta outra terra falam patuá, língua dos que lá sempre estiveram; francês, dos colonizadores; inglês, língua universal e Chinês, pois o comércio é dominado por estes. Aqui é também caminho de Araguari, cujas ondas de pororoca atraem meninos loiros como anjos e valentes como dragões, vindos do mundo inteiro com asas nos pés para voarem sobre as ondas. O Afuá, cidade inteira de palafitas sobre as águas, de onde os moradores não descem nunca, e são silenciosos para não acordar a arraia gigante que sustenta toda a cidade. Bailique, um complexo de 38 comunidades em ilhas encantadas onde quem não tem muito bom coração facilmente se perde nos rios, que julgam ser atalhos para canto algum, e só quem tem o dom de renascer das peias pode sonhar em ter um terreno neste pedaço de chão.

Eraldina, Isoldinha, Isadora, que vida! Uma tem 4 filhos, um com cada pai que lhe apareceu na estrada e lhe prometeu cuidado. Outra foi mesmo embora com alguém, abandonando o marido com cinco filhos em escada, o menor ainda bebê de colo. A última cansou de ser repetidamente abusada e calada, encontraram-na coberta de sangue verde e olhar senil na beira do rio. Nesta comunidade, a mulher existe para trabalhar duas vezes mais do que o homem, carregando peso na barriga, fora dela, dos seres e das coisas, e seu olhar nunca pode ser maroto como é de sua natureza, mas sim triste de peia da vida e dos maridos. Nós, mulheres vindas de fora, trabalhando tanto, estamos em uma categoria um pouco só mais especial: os homens não ousam abusar tanto como abusam das que aqui sempre estiveram.

É comum terem os filhos pequenos desaparecidos, evaporando no calor do asfalto, mas não associam isso à fronteira, e sim a encantamentos de outros tempos. No mais, morrer “de corda”, pendurando estas nas árvores e fazendo uma viagem sem ar.

O único consolo parece ser um rio de água transparente, que dá nome ao lugar. Água boa é água fria, dizem por lá e concordo. Ali moram muitos peixes, são tantos que no fim do dia estão saltando pra fora d’água por falta de espaço. Os botos que olham nos olhos da gente, que quando nadamos sozinhos marinam ao nosso redor, e que se por muita maledicência da vida agradar da pessoa, pode encanta-la. Aí, só Deus pra tirar deste caminho sem volta, onde de noite se sonha com o sexo oposto e de dia se vai esvaindo em uma cor amarela, passando a andar só pela mão dos outros, até sucumbir de tristeza por uma vida que nunca pôde ser sua. Neste rio silencioso, sucuris dormem enterradas no fundo, e nas beiradas, jibóias que quanto mais crescem mais se enroscam onde estão, ficam na árvore feito enfeite de samambaia e basta olhar em seus olhos para se perder para sempre. Pode-se até querer sair deste feitiço, mas à vontade não responde o corpo, domado que está pelo que entrou-lhe através dos olhos. Assim perdido, ficamos arrodeando a cobra, chegando cada vez mais perto até levarmos o bote fatal. Ainda assim, nadamos em segurança todos os dias, de manhã, no almoço e no fim da tarde, antes dos trabalhos da noite.

Horrorizaram com a gente trabalhando de domingo, e juraram que assim íamos ficar enterradas no chão, como aconteceu com o filho de uma senhora que andava à noite sobre o rio sem se molhar. Este foi trabalhar na roça da mandioca e na hora que foi puxar uma de caule vistoso, foi puxado para baixo, ficando lá pegado por exatamente um ano, garante Seu Eulálio que viu a cena com estes olhos mesmos que eu olhava então.

Ah, mas que injustiça com esta terra sem verdade, se não lembrarmos do Seu João, o segundo morador deste lugar, que manda um abraço aos meus pais, que julga serem de bom coração numa terra de violência, que pergunta de onde vem essa garra, de tão longe em braços de menina, que o faz ter esperança na vida. E que muita injustiça se não lembrarmos toda noite dos mil e um olhos de jabuticabas que nos acompanharam atentos em todos os nossos momentos, que se penduravam na gente feito macacos em galhos, que enlouqueceram com a visão do cinema, que nos fizeram experimentar um sem fim de frutas (seriam frutas?) diferentes de tudo o que já vimos até então, que contrapondo aos olhos apáticos dos adultos, olhavam inquietantes para a mala que, por causa deles, arrumamos e enchemos de saudade. Ir embora nunca é fácil em canto nenhum. Neste aqui, em especial porque temos que deixar uns meninos e meninas, que um dia na volta, serão como estes maiores.

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