27 de junho de 2007

Comunidades rurais de Ponte Alta do Tocantins - Tocantins

Na chegada às comunidades é comum encontrarmos faixas de boas vindas. Uma delas dizia: “O Brasil precisa de mais pessoas como vocês”. Embora trabalhando até quando não trabalhamos, sinto um mal estar: “O que realmente fazemos pelo Brasil, nós aqui no sudeste?”

Palmas, capital do estado do Tocantins, foi inaugurada em 89. Projetada tal e qual Brasília, é apenas menor. A proposta é a mesma e de dentro do glamour olha-se para o lado e vêem-se as cidades satélites agregadas, tanta gente nesse mundão de Deus, e como sempre na cidade a periferia não entra para morar, entra para trabalhar. Atravessando o Estado, preparei-me para ver campos e mais campos de soja e pecuária, infernos do país, mas o que vi foram quilômetros e quilômetros de cerrado, poucos lugares na beira da estrada desmatados e pequenas vilas que surgiam no meio destes rincões, com pessoas que, me parecem, sempre estiveram aqui. O cerrado esconde surpresas indescritíveis com tantos tons de verde que parecem milagre, arrancando alegrias e surpresas súbitas. As árvores se esforçam por crescer, revoada de araras coloridas. Não se vê capim dourado nos campos afora, dizem que está acabando sendo extraído por poucos com manejo. Ainda assim encontramos quem carregue maços dourados nos braços, cor de ouro com flores nas pontas, 15,00 o kilo na temporada, 40,00 fora dela. Deste brilho enfeitiçante saem bolsas, brincos, colares, cestarias, distribuídos (de novo e como sempre) para o sudeste do Brasil.

Em Ponte Alta do Tocantins, portal do Jalapão, rumamos para a área rural, de longe a nossa preferida. Arranchamos depois de muito andar na casa da Dona França, tão receptiva, e que tem uma nuvem branca na cabeça, olhos miúdos e a pele com sulcos desse próprio chão. O senso dela está bom, anda aprumada para a Assembléia sob um enorme guarda-chuva preto que lhe serve de sombra, passando por baixo dos colchetes (cercas de arame farpado) que encontra no caminho. Embora goste de prozear bastante, escuta mal e conversa muito mais com os que já passaram para o outro mundo. Dormimos na sua sala de telhado de palha com três paredes de barro, a terceira aberta para o mundo. Mesa de madeira, nossas duas redes emparelhadas, café na caneca, lata dágua na cabeça, porta de duas bandas e o mundão lá fora. De noite uma vaca branca, bichão imenso passa prá lá e prá cá balançando a sineta que traz no pescoço, belém, belém; e de manhã as galinhas do mundo inteiro invadem o nosso aposento, fazendo uma grande algazarra a fim de acordar Dona França, que por fim levanta com sua nuvenzinha e pernas de andorinha, espalhando milho em seu terreiro e calando as bichinhas. Usa também um chicotinho para alinhar as galinhas. Tudo isso vejo naquela hora entre o dormindo e o acordado, mas quando está perto das sete por fim levantamos de vez para mais um dia de muito, muito trabalho.

Nessa terra onde ninguém chega, os professores me chamam de professora. No fim de um dia inteiro mediando produções e sistematizações, venho descendo com eles a estrada. Vou encontrar as meninas para a palestra que já montaram debaixo das mangueiras e o cinema, debaixo de um fio de lua no céu que uma estrela segura. No pé de uma igreja distante, encontro as senhoras sentadas em roda, sou convidada a participar. Aceito com muito gosto, ouvir e falar de todos os vivos e dos mortos que nos carregam. Dão-me uma boa cadeira, olho para os meus pés, estão iguais aos delas, secos de poeira vermelha na sandália, minha saia até o joelho como as delas, meu cabelo preso em coque. Me esforço nos seus vocabulários, com o sucesso de quem está aqui há dias. Elas riem das minhas falas e eu sou assim daqui, São Paulo um mundo tão distante e irreal como um filme de uma vida alheia. Nunca vou esquecer esta sensação: tudo parece estar exatamente onde deveria, inclusive eu.

Aniversário do Estado do Tocantins. 18 anos. Um lugar que, agora sei, juntou os pedaços mais esquecidos de todos os outros estados em volta: sul do Pará e do Maranhão, nordeste da Bahia, norte do Mato Grosso e de Goiás. Ergue-se assim com um pouco mais de autonomia e recursos próprios, tendo assim esse povo algo que celebrar. Dançamos em um rancho de lampiões, em meio a serestas, risadas e grupos de vivas, mas governador nenhum de canto algum sabe desta nossa festa secreta no meio do país.

Depois de tudo, todo dia, vamos ao banho. Para o banho, lanterninha mesmo, no rio. Nos primeiros Dona Maria nos acompanhava, e sua figura forte e serena, seus olhos no escuro faziam do rio um lugar apenas escuro e de água morna. Depois, a fim de não amolarmos mais ela, fomos só nós mesmo. Grande engano. Escuro de fazer medo nos olhos, com barulhos indecifráveis, não agüentamos, voltamos correndo, debandando com o cabelo eriçado, que levantava a gente do chão. Livusia é o nome que dão para este sentimento, isso que escutamos e não sabemos o que é, que atormenta a alma e faz o homem não servir para mais nada. É muito comum que aconteça mesmo com mulheres, alertaram os senhores quando nos viram com cara de quem viu fantasma.

Aliás, nós mulheres, lá na roça estamos em uma categoria toda especial: temos útero e não podemos carregar peso, o que torna a viagem e todas as outras atividades um tanto quanto mais leve. Além disso, temos olhos de jibóia, com capacidade de enfeitiçamento. Para quebrar qualquer poder de nosso olhar ou palavra, só cortando o dedo e jogando o sangue em cima é que desencanta. Somos as pessoas mais fortes do universo, capazes de suportar dores algozes por horas a fio, fazer os vaqueiros aboiarem mais rápido, aquecer qualquer coisa apenas botando a mão em cima, criar 18 filhos e mais dois particulares, se quisermos.

Esse é realmente um cantinho no mundo, nunca ninguém diferente apareceu por estas bandas. A luz elétrica chegou em agosto, e não mudou muita coisa, apenas a proza fica até mais tarde.

Na nossa modesta partida, que algazarra na comunidade, dia de festa. Os homens assam carne debaixo da mangueira, as senhoras se agitam mais que nos outros dias, suando em bicas na cozinha, fazendo milagres no fogão de duas bocas. Acabou o curso, entregamos os certificados, queridos alunos, tão entusiasmados e comprometidos, cheios de sonhos e promessas. No meio da festa meu coração sangra, por tantos diferentes motivos. O maior deles é não poder me esquecer neste canto do mundo, é agüentar a despedida, agora tão próxima. Queria sarar, mas a cura, não sei porquê e isso me deixa maluca, não posso ter. Todo mundo chora, eu também. Basicamente porque ninguém sabe até onde a gente vai na vida e se nos encontramos de novo. Dona França abraça, olhos miúdos dentro dos meus. Ela sabe, do alto de seus 84 anos, que nossas chances de reencontro são remotas. Diz que a saudade dela é maior do que a minha, porque enquanto vou para uma labuta diferenciada, consigo até disfarçar, mas ela fica nessa vida de sempre, igual a antes, igual a todo dia, igual, igual.

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