6 de novembro de 2008

Meninos de Rua na Rua


“Em defesa da gravidez coletiva,
pela democratização do espanto,
pela expressão criativa da razão,
pela semelhança de nossas diferenças,
pela solidariedade sensível de expressar,
pela responsabilidade social de criar”.
autor desconhecido


Lúcio Beninatti sempre morou “de favor” em um quartinho nos fundos de um barraco, na favela de Diadema. As pessoas de lá cuidavam e amavam o Frei, alegre. Julgavam, no entanto, que havia sido expulso de sua congregação, fosse ela qual fosse, porque vivia de maneira humilde, contando com a boa vontade das pessoas. Sempre de calça jeans e camiseta branca, sandálias de couro e uma cruz pendurada no pescoço, balançando no peito, o único gesto que revela sua religiosidade. No fim, acho muito divertido que fale palavrões quando a situação não anda boa para o nosso lado.

Uma das senhoras que lhe servia o jantar nos convidou a participar, muito simpática a Dona Maria, com risada solavancada. Sentamos em torno de uma mesa de toalha xadrez, na sala de sua casa, que era também a sua cozinha. Diante de um imenso prato de arroz, feijão, frango ensopado e salada, o Frei não perdeu, como nunca perde, a oportunidade de ser educativo: “Olhe Morena, D.Maria te convidou para jantar e fez este prato bem grande para você. Mas não é todo dia que ela tem almoço para os filhos, então, não desperdice a sua comida, porque é uma desfeita muito grande”. Impávida, a criança segura a colher e enfrenta o prato postado em sua frente. Estranho que não se queixe como normalmente faz: “não quero isso, não quero aquilo”. Arregala os olhos para o Frei, não ousa compartilhar de uma ação “desfeitosa”. É uma menina de nove anos, diligente. Decide por si mesma nos acompanhar no trabalho de rua, não quer ir para casa, aquela televisão chata.

Invariavelmente faz frio de noite, sempre venta na Praça da Sé e no Vale do Anhangabaú, este mundo amarelo de luz de poste, os espaços abertos, o céu distante e escuro, cachecol no pescoço. A menina está bem familiarizada com a caixa de remédios e a caixa de brinquedos, que carregamos em revezamento.
As crianças que vivem ali, diante da visão das caixas, vêm ao nosso encontro aos saltos e me lembram as crianças da escola chegando: “Oi, tia!” felicidade estampada no rosto. Bonitos, as bocas cheias de sorriso.
Sempre pergunto primeiro: “Quem está machucado e precisa de curativo?”. No entorno, uma roda se forma imediatamente. Há pequenos cortes, arranhões, feridinhas leves, machucados de criança. Com paciência, um por um, vou cuidando, limpando, passando remédio, enrolando com arte o esparadrapo. Tenho todo o tempo do mundo e quase nenhum material. Dá mais trabalho deixar tudo limpo no final. Enquanto cuido, vou dando recomendações maternais. Observando como o Frei dialoga com eles, fui aprendendo a fazer igual.
No entanto, os ferimentos especiais são aqueles não visíveis. “Cadê o machucado?”, pergunto para o pequeno que se posta à minha frente: é um menino, bate na minha cintura, agacho para olhá-lo nos olhos, bem brancos no rosto negro, longos cílios. Ele procura o machucado no corpo, rápido e agitado.
Encontra um pequeno ponto vermelho, uma cicatriz antiga, e aponta, com grandes gestos: “Está aqui!”. Aperto os olhos e não vejo machucado nenhum. Mas peço que se sente no chão da rua: “Como você se chama?” “-João”, diz. Ele tem mesmo a voz grossa de um João. “Vem, João, vou cuidar de você.” Nestes machucados inexistentes, nos demoramos mais, muito mais. Suas feridas são invisíveis, e suas dores são internas e profundas. Aprendi com o Frei e com o tempo: estes ferimentos aparecem com grande freqüência, porque junto com eles vêm os cuidados, conselhos e mertiolate, gaze e carinho. Talvez a lembrança de uma mãe distante e a memória funda de saber que também eles precisariam ser cuidados, coisa que esquecem cotidianamente, recorrentemente. O Frei sinaliza que eu aproveite o tempo para conversar, o que nem sempre é fácil. Quanto mais jovens, mais bravos e agressivos, muito porque precisam se defender com mais empenho na rua, esta casa grande, sem paredes e cheia de vento, de espaços vazios, de falsa liberdade, que os deixam vulneráveis a todos os perigos do mundo. Colocam a cabeça no meu colo somente se não tem ninguém prestando muita atenção, um momento rápido debaixo da luz do poste, enternece meu coração cansado.
Assim, ensinam de sua dignidade: João, como tantos outros, saiu de casa com 7 anos e a roupa do corpo, por conta própria e risco, optando conscienciosamente. Quem disse que há alguém no mundo que não possa ficar na rua? Porquê? Voltou para casa, mais tarde, apenas para buscar sua irmãzinha, que era menor ainda. Estufa o peito para dizer que quem cuida dela agora é ele, e que apesar de viverem nas ruas, ela não é mais constantemente maltratada. João é pequeno, mas é grande. “O machucado vai sarar”, digo para ele com segurança quando termino. Mas no fundo, não tenho tanta certeza assim.
“Às vezes, nossa fé na bondade do mundo vacila”, disse-me Tidu um dia, linda preta velha de olhos cerrados. Assim me sinto muitas vezes, olhando a vida entre os meninos nas ruas.

Com lesões mais graves, o Frei se encarrega de acompanhá-los ao hospital. E para que não sejam expulsos na porta de entrada do pronto-socorro, um adulto diz em alto e bom tom que se responsabiliza por aquela criança maltrapilha. A recepcionista, desconfiada, deixa assim que adentrem o território dos médicos. Lembro desta menina e dos seus olhos brilhando quando dissemos que iria ao médico. Quase não acreditava: “Vou ao médico?”, repetia a pergunta insistente e incansável. Quando se convenceu de que era verdade, percebeu: “Mas não posso ir assim, suja da rua”. Frei Lúcio suspirou paciente. Bem que tentou, passou em diversos estabelecimentos pedindo para usar o banheiro, mas os comerciantes, olhando uma menina de rua e um homem simples, não deixaram não. Que é dos banheiros públicos nas praças de São Paulo?
Ela, insistindo em tirar o preto do rosto. Frei Lúcio desistiu: “Vamos assim mesmo, tudo bem”. Ela retrucou: “Me espera aqui um minuto então”. Entrou no chafariz da Praça da Sé, apanhou da polícia, saiu arrastada pelos cabelos. Foi para o médico com o olho inchado e roxo, mas sem o sujo-preto no rosto, sorrindo feliz, a criança.

Nossas histórias com os meninos de rua dariam um belo livro nos dias de hoje, porque o mundo parece vê-los com olhos diferenciados e tem dificuldade de enxergar, essencialmente, o que os meninos são: crianças.
Morena, ao lado do Frei, é quem consegue dizer sem palavras que criança é criança em qualquer lugar do planeta: brinca com os meninos como se fossem colegas de escola, correndo divertida pela Praça da Sé, e já três vezes eu a levantei no ar no momento em que estava prestes a mergulhar no chafariz. Um dia, ainda pequena e de mãos dadas, em tempos em que permitiam, condescendentemente, que os meninos nadassem de fato na fonte, ela pediu, invejosa deles: a próxima vez que viermos aqui, você traz por favor meu biquíni e minha toalha?”
Hoje, anda mais resignada: observa cobri-los de noite, contar histórias, brincar, fazer curativos, gesticular no escuro da noite para os medrosos, dizendo que está tudo bem, tentando incansavelmente relembrar a todos de nossa humanidade, tão, tão esquecida nestas ruas escuras, que o Frei acredita que se pode fazer melhor a cada dia. Um trabalho sem fim, para muitas gerações. Para ela há um quê de causalidade fatalista, acha que é uma menina de sorte com uma mãe que anda a salvar meninos, ainda não entende que são eles que salvam a mãe. Costumo lacrimejar quando leio os direitos universais dos pequenos, me dói sobremaneira que se tenha tido necessidade de escrevê-los um dia. Depois, que eles efetivamente não se apliquem a todos, apesar do esforço exaustivo de muitos colegas militantes nesta área.

Quando o Frei anuncia a Estação da Luz, me despeço de Morena: lá não pode ir, vai para casa. O mundo naquelas ruas reproduz cenas de filmes B de terror e creio que criança nenhuma na face da terra devesse participar. Uma vez, arrisquei levar uma amiga com a gente e ela chorou e vomitou, inconsolável, por três dias consecutivos, lembrando das visões daquele lugar. Sempre torço os dedos e penso “não tem criança aqui, não tem criança aqui!”. Mas tem. Nas ruas escombrosas, onde os perfis se delineiam difusos, em algum canto de alguma esquina, encontramos os meninos. Já são pequenos por natureza, ali menores ainda. Os traficantes e a polícia nos deixam trabalhar sossegados, em uma relação absurdamente sustentável. Cada vez mais, no entanto, a polícia se crê superior e as coisas andam difíceis, até para o Frei, este senhor que costuma impor respeito com um relance de olhar. “Direitos Humanos”, gosto de dizer bem alto, quando resolvem mangar de seu “missionarismo”. Ali, as crianças, não querem saber de nós e avisam: não têm machucados e não querem brincar. Enquanto nos postamos em frente a eles, escondem as mãos nas costas, cheias de cachimbos: aguardam agitados a nossa saída. Um deles não agüenta, leva o cachimbo à boca, sendo duramente repreendido por um maior: “olha o respeito, olha a tia aí!”. Quando saímos, arrefeço de verdade, o menino tinha no máximo, 4 anos de idade. Enrodilho-me no braço do Frei e peço: “vamos embora, por favor, não há nada que podemos fazer aqui!” O Frei me segura, me olha firme, profético: “Filha, é no inferno que encontramos o paraíso”. De fato, alguns minutos mais tarde, um daqueles meninos pára na nossa frente e agita-se: “Tia, tio, por favor, desculpem os meus amigos, não estão em uma boa noite. A gente gosta muito que vocês venham aqui, por favor, não deixem de vir, não deixem nunca, nunca de vir aqui ver a gente”. Olho para um lado: rua escura, vultos cobertos revolvendo-se pelo chão ou vagando sem controle, atarantados. Olho para o outro: A Sala São Paulo parece, brilha mais do que de costume, as pessoas saem dos carros insulfilmados, com o pé no tapete vermelho, arrastando longos vestidos. Morena sabe que é tudo o mesmo mundo, sonhando deitada em uma cama confortável. Eu já não sei mais.

14 comentários:

Anônimo disse...

Ta Bao - I will be there! Just kidding - I wish.
How are you? How is Moriah?
Did you do your trip up north this year?

I hope all is good and you are laughing and singing!
-Zohar

Anônimo disse...

Onde anda vc, dona Sô?
Bjs
Eli

Anônimo disse...

ei bonitona....
sodade!
vc vai dançar?

Anônimo disse...

Sô,

Agora pouco estava falando contigo, caminhando na Luz e atenta por causa do celular na orelha. Será que estava atenta?? Ou será que estava numa capsula?
Ai, chego aqui e leio mais um texto seu. Cheio de verdade, tão perto e para a maioria dos transeutes tão longe...

Anônimo disse...

So,

Seus textos sempre me comovem demais.
Parabéns.

Beijo

Anônimo disse...

Soraia, vc é demais! O que vive e o que escreve são de uma boniteza sem tamanho.
Agradeço imensamente que eu esteja em e-mails com textos seus anexados.
Bj

Anônimo disse...

Lindo texto, So. Mexeu bastante comigo - e dá para ver como mexeu muito contigo também.

Tudo bem por aí? Defendeste?

Beijos. Pra Mo também.

Anônimo disse...

E engraçado que em nehuma outra época da história humana as crianças foram tão desprezadas e violentadas quanto na atualidade. E em nenhum lugar do passado ou da antiguidade existia o Declaração de direitos da criança.
É literalmente isso: a declaração está lá pq a sociedade não consegue dar dignidade à elas. A frustração deste desejo coletivo é transformado então numa declaração de intenções... É uma nota promissória de uma dívida cujos juros são tão violentos que a sociedade ignora.

Anônimo disse...

Oi Soraia,

o texto é muito forte, me emocionou. Não sei como suportar ficar tão perto de tamanho sofrimento... parabéns!

Anônimo disse...

Soraia do céu, falar assim de mil maneiras, é seu texto é cheio de coração. Fiquei muito emocionada vendo tudo isso através de vc e gostaria de te agradecer. O seu trabalho é absolutamente indispensável. Que nem fala ,acho, Madre Teresa algo assim:" meu rabalho é como um gota d'água no mar mas, se não fosse ele, o mar não seria o mesmo."
Nos últimos 2 anos em São Paulo, eu e mais um grupo de pessoas formadas em massoterapia faziámos parte do projeto de nome Crescer e atendiámos 01 vez por semana crianças de abrigo em massagem e participação "cuidadora" no Abrigo Marli Cury aí perto da Heitor Penteado. Foi um período de muitas trocas, descobertas, crescimento, e muita riqueza em minha vida. Pretendo retomar coisas quando voltar e com certeza vou querer conversar mais com você a respeito desse tarbalho que vc faz.
No apartamento que eu morava ai em Perdizes mora hj a Cláudia, uma pessoa extremamente amável e acho que vc.s tem muito em comum. Adoraria mostrar o seu texto pra ela... pode ser?! Se não der, tudo bem mas, continuo achando que vocês tem coisas muito ricas pra trocar e seria realmente um grande encontro.
Fico feliz pela Morena ter esta oportunidade junto de vc. Essa educação pelo e para o amor com todos os nossos "diferentes" faz grande diferença na vida, na nossa mesma vida.
Que as forças mais criativas e amorosas estejam sempre te realimentando para a construção e encaminhamento deste trabalho que é, no fundo por todos nós.
Um beijo grande e obrigada por me deixar conhecer um "pouco" do que vc faz.
Até mais,

Anônimo disse...

Oi, Sô!
Saudade imensa de você e da Morena.
Estou em SP e irei à festa amanhã. Nos encontraremos.
Pra variar, me emocionei sobremaneira lendo seu texto e senti enorme orgulho de você. Conforta saber que ainda existem pessoas como você, que educam os filhos mostrando que todos somos iguais, apesar das diferenças, que todos somos irmãos e temos os mesmo direitos.
Obrigada, minha linda, por sua alma tão boa, por seu grande coração.
Com amor,

Anônimo disse...

vc escreve muito bem, hien? Muito legal o teu texto...é com isso q vc está trabalhando agora? e a Morena te acompanha? Nossa !! Legal, hein?
saudades maluka !
bjs

Anônimo disse...

Obrigada pelo texto Sô, é lindo!!!Toca bem fundo e nos faz parecer tão pequenos .....
Beijos da sua tia "fã"

Lúcio disse...

Nessas de curiosar por aí descobri meu nome num texto muito bom! Me chamo Frei Lúcio, e já me vi em situações nada confortáveis com relação a pobreza e a esse sistema que gera dor, mas alimento esperança, não de que o mundo mude, mas eu, somente eu...
acho que começa assim...
Bom texto! Parabéns