25 de fevereiro de 2008

Crianças Índigo


Cena cotidiana no centro de São Paulo: farol vermelho, duas amigas dentro de automóvel simples, carros por todos os lados. Estes multiplicam-se incansavelmente nesta cidade casada com a Loucura. A visão do inferno pode bem ser esta mesmo: 30 minutos no mesmo lugar, no carro, sem rádio e a criança em casa te esperando chegar. Mas o caso agora é asfalto para o trabalho, óculos escuros que a vista anda mais sensível nos últimos tempos por inexplicável motivo, incrivelmente animadas neste mundo de maravilhas, mais um dia, graças a Deus.
Assistem o aproximar de meninos de rua: pequeno bando sujo, aos farrapos, estatura baixa, valentes, brabos, fazendo miséria entre os vulneráveis motoristas imobilizados pelo farol e pelo medo - gente do bem, cada um cuidando de si e sem querer nada de ninguém. Moleques malvados, garrafa de cola, cheiro de bueiro, descalços e ágeis, morenos e pretos, roupas gigantes que escondem objetos cortantes, nada a perder, clamando o vale tudo do mundo como deuses sem fé, muito poderosos, muitos, muitos e por todos os lados.
Nossas janelas estão abertas para o mundo e para eles e assim, para esta barulhenta e ameaçadora chegada, aproximação confusa, certa e rápida. Solitárias em meio aos outros carros, fechados, insufilmados, envidraçados, todos a nos olhar com pena e pesar, que descuido estas meninas, tão lindas. Fechem os vidros meninas, fechem os vidros, dizem com os olhos. “Não feche o vidro”. Não feche o vidro. E no mesmo instante os menores já cercaram o carro em grande burburinho, sobrancelhas cerradas, quanto menores mais agressivos, sobrevivência nos olhos e um baixo tom impositivo na voz: “dá o dinheiro aí”. Respiração curta, sem saída, a amiga prende o ar.
E em fração infinitesimal de segundo - esta que não pode ser quantificada nem medida, que costumamos ignorar em grande erro, porque aí é que se operam as grandes transformações da humanidade – tira voz do fundo da alma, bem verdadeira: “Dinheiro não dou, mas beijo dou”.
Que grande alegria, que grande festa chamada Festa de distribuição de beijos na janela no sol na manhã. Crianças aos montes na moldura aberta da vida, meninos grandes e pequenos, de chupeta, chupando dedo, fila, os de longe vindo perto, se é beijo também quero, é beijo que está dando, primeiro eu, primeiro eu, bicos e estalos para todos de sorriso largo, ajeita o cabelo de um, a sobrancelha de outro, o sujo da sua bochecha, mais beijos, muitos beijos, beijos aos montes, kilômetros e kilômetros de beijos, ataque violento de beijos para todos, moleques, vocês merecem beijos. É festa, é festa no centro da cidade.
Os motoristas olham atônitos e incrédulos, esqueceram até que tinham pressa, essa é a revolução de beijo, operando transformação com pequenos gestos e muita humanidade. Talvez um dia morreremos assim: heróicos de amor e credo na vida, mas não hoje. Hoje o farol abriu e todos acenam em despedida – Tchau tia, obrigado! – inchados de coragem e crença no bem, a vida sem mãe faz medo, envidraçados fazem medo - abriu sinal, o mundo se movimenta, e nós entupidas de beleza e miséria, amor e pobreza do mundo, consolo a amiga: eu tinha medo, eu tinha tanto medo, e eles preferiram os beijos, eles queriam beijos, eles não ganham beijos - eu sei, eu sei, todo mundo sabe, mas não quer saber que o cheiro da rua pode entrar no carro e o cheiro do carro pode sair para a rua.

13 comentários:

Anônimo disse...

Olá, Sô.
Obrigado por compartilhar de suas atitudes rizomáticas, tal qual a carqueja que busca as frestas para prosseguir, sempre incansável em sua sina de produzir linhas de fuga ativas.
Fique com essa que me lembrei de relance:

"A única saída é a erva. Ela cresce por entre as coisas, nos vazios, nos grandes espaços não cultivados. O repolho é útil, a flor é bela, a papoula enlouquece, mas a erva é transbordamento...ela é uma lição de moral". (Félix Guatarri e Guilles Deleuze).

Anônimo disse...

Ainda não tinha te dito que adorei mais esse aqui. Se é com a experiência vivida que você se inspira para criar esses textos, rogo para que não faça outra coisa senão correr atrás de experiências que lhe sirvam de inspiração (e o mundo tá cheinho delas isso você sabe). Se quer um conselho de amiga, faça mais isso, escreva mais

Anônimo disse...

Lindo e, ao mesmo tempo, triste!

Saudades de vocês!

Anônimo disse...

Sô,

Lindo...

onde é o fim da fila do beijo...

"pode pedir frenteira"

lindo lindo

beijo para você

Anônimo disse...

achei bem poético e emocionante esse texto. foi você quem escreveu? eu bem que gostaria q a nossa realidade fosse assim, mas, tantas vezes, é tão seca & dura, quanto a daquela menininha do pará, ou, daquela criança do rio de janeiro.
confesso q ando com muita saudade da sua sempre deliciosa presença, e sentindo muitíssima saudade também, da linda, alegre, generosa, e sorridente, morena. constantemente falamos dela, e de você...

Anônimo disse...

Eu fico orgulhosa pela ação, pelo texto, mas mais que tudo pelo fato de termos vivido isso de forma tão real e poética.

Compartilho e me orgulho dos comentários, mas me orgulho mais de ter vivido essa poesia.

Vamos registrar mais feitos do dia a dia e transformá-lo em poesia e emoção.

Anônimo disse...

Soraia, querida, foi emoção aos borbotões ler "Crianças índigo". Se aconteceu essa violência do beijo,de fato, não importa menos do que o acontecimento de seu texto, que eterniza em cada um dos que o recebemos de presente o arrepio vindo diretamente desse horizonte outro de possibilidades: amor como santo de frente...

Anônimo disse...

Que lindo! Você é tão linda!
Encaminhei para um monte de gente dizendo : É minha amiga !!!

Anônimo disse...

Eu te amo...

Anônimo disse...

AI, QUE COISA MAIS BONITA DE SER LER... SE NÃO FOR DE VERDADE, VOU FAZER DE CONTA QUE FOI.

Anônimo disse...

Pô meu , tu consegui me fazer chora (de novo).

Muito lindo. Tá na hora de publicar, né?

Anônimo disse...

Puxa, Soraia! Obrigada por ter nos mandado isso! Eu abri o choro incontido, pensando nesse brejo da Cruz em que o nosso entorno se transformou, pensando nessa meninada! Que bom que existem esses acontecimentos para nos desengessar da dureza em o medo nos vai transformando...

Anônimo disse...

Que lindo!!!!!!! estou arrepiada dos pés à cabeça.
Aproveito esse momento de coração aberto para dizer que no chá da Marina e o do Iker, fiquei olhando você e a Morena e lembrei da minha mãe e de mim, que ela também me criou sozinha, na garra e no amor. Eu andava com muita raiva da minha mãe ultimamente, estava difícil lembrar porque eu amo tanto ela. E aí, vendo vcs duas, lembrei de tudo. Obrigada!