27 de junho de 2007

Quilombo


“Mire e veja: o mais importante e bonito do mundo é isto:
que as pessoas não estão sempre iguais,
ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando.
Afinam ou desafinam verdade maior.”
João Guimarães Rosa

Deixamos uma cidade de velhos marinheiros cansados em direção ao Quilombo, pegando ônibus em um centro rodoviário colorido e animado, mas na direção oposta aonde iam todos os turistas, viajando com nossas mochilas junto ao povo da terra, sentadas em sacas de farinha e com farelos de pão voando nos ares. As galinhas se debateram tanto durante o trajeto que acabaram por perder duas no caminho, flutuaram no vento para fora das janelas.


Antes de chegarmos não sabemos para onde vamos, mas as crianças confiam na providência divina, o que me dá segurança. Descemos no meio da estrada, o ônibus parte em uma nuvem de poeira, que desalento. Depois da curva, a igreja branca e azul de São Benedito, a pequena escola e a sede da Associação de Moradores em paredes de barro. Olhos tão alvos em rostos tão negros nos observam chegar. A Morena é meu passaporte de apresentação, meu melhor documento em terra estranha: sou mãe sim senhores desta criança que pula e acena animada por chegar. Sorrimos e eles sorriem de volta.


Jurava que um quilombo no sudeste, na beira da rodovia, em local de fácil acesso e de grande especulação imobiliária não haveria de ser como os distantes e remotos meus conhecidos do Norte. Mas os Griôs daqui – os idosos e mais sabenços – são parecidos com os de lá, sentados imponentes na porta de suas casas. Também aqui tem rio e tem roça, núcleo familiar, campinho de futebol, vendinha, muita criança correndo solta, um orgulho imenso e meu desconhecido de dizer e afirmar que aquele chão é deles de papel passado sim senhora. Banho de rio, de cachoeira, chega o fim de tarde, sou toda ouvidos. Têm leveza na hora de contar que conseguiram a titulação das terras à 08 anos, que quilombo não é terra de negro fugido, sem paradeiro (isso é mocambo), que foram 03 senhoras as fundadoras disso tudo. A estas foi dada a permissão de viver neste lugar graças a Deus e por merecimento e reconhecimento de anos de trabalho e servidão aos seus senhores, libertando-os assim um pouco do peso de suas consciências povoadas de fantasmas. Mulheres fortes e lindas, vejo em seus olhares nas fotos antigas que me mostram e hoje, nos de seus netos e bisnetos. Contam a história assim sem mais nem menos, como um causo de outros tempos, mas aos poucos vão revelando as dores de muitos anos de luta, de enganação de muitas promessas de sucessivos governantes, de como se organizaram para pagamento de doutor particular, trocando serviços por sacas de farinha que carregavam nas costas por muitos cruéis quilômetros na época em que essa estrada era apenas uma picada e ainda precisavam de querosene e sal. Alguns doutores sumiram também, mas os negros contam rindo que cada um deles hoje deve estar pagando caro cada gota de suor que seus parentes derramaram por anos a fio em vão. Mantêm assim este costume de roda em volta da fogueira, com os mais velhos pigarreando estas e outras histórias. Há com certeza as preferidas para nos contar: a assombração que aparece no quintal da Avó Adelaide, o neguinho de 03 cabeças que surge aos desavisados de repente no campinho, o Muro do Diabo que se move, a Cachoeira que pára à meia-noite. Aqui os mortos voltam para conversar com os vivos em noite que não tem estrela – contam onde esconderam dinheiro, anunciam dívidas não concluídas, e se faz de um tudo para salvar a alma de qualquer morto.


Junto com o dizer finalmente que esta terra é nossa, emendam que por aqui não se vende nem se aluga, que para viver nestas bandas só casando mesmo, tornando-se assim membro de uma grande família. Propostas não faltam à visitantes bem intencionados, bem recebidos. As crianças acolhem a Morena e as comadres a mim. Passeio com elas de dia, vamos à casa de outra comadre, que parece, não passa bem. As senhoras se encontram no meio do caminho, sem hora marcada e sem que eu consiga entender como esperam umas às outras na porta de casa com sombrinha na mão. Vão balançando as cadeiras na rodovia, alheias aos carros em alta velocidade, do mesmo jeito que se andam nas ruas de terra, cumprimentando quem vai do outro lado da pista e parando para saber notícia dos de lá. Lá era longe, andamos muito para chegar e perguntar: “D. Georgina, ouvimos falar que o pé da senhora inchou, foi o quê?” Conversam com naturalidade dos males das cobras – conhecemos esta dona sem uma perna, que na hora do veneno estava longe da Guaçatonga – árvore cuja seiva tira este mal sem remédio (analgésica e antiinflamatória, usada como emplastro em picada de cobra). Falam também de muitas crianças que morreram por outros males – Deus dá, Deus leva, mas a verdade é que se casam entre primos. Como prá Deus tudo é possível neste mundo, há também alguns casamentos entre irmãos. Quem fica por aqui é assim mesmo, mas alguns viajam para trabalhar, pegam conhecimento e afeto, casam com uns outros de outras terras e se espalham por aí afora.
A maioria da comunidade é mesmo evangélica, mas os da minha idade se lembram de rodas de batuque com pessoas de outro mundo vindo para conversar e dançar. Os desta geração, aliás, têm a mesma garra de seus pais e avós, não carregam no lombo as sacas de farinha, debatem-se na frente de um computador escrevendo projetos e falando em nome da comunidade. A Associação organiza assim oficinas de dança, confecção de instrumento, e o mais bonito: cestaria de taboa - lindos pendões que dão no brejo. Organizam reuniões abertas toda 3ª feira e realizam uma Assembléia com a comunidade mensalmente. Isso em períodos de calmaria. Divergências são discutidas até a exaustão em reuniões intermináveis de ânimos exaltados. Atendem a encontros nacionais de quilombolas, têm ampla articulação política, realizam parcerias com Universidades e outras instituições em prol da comunidade, trabalham em mutirões, porque não sabem, dizem, fazer de outro jeito. Perguntaram às crianças o que gostariam de manter neste lugar para as gerações futuras e elas responderam em uníssono: o rio. Assim, não há casas na beira do mesmo, e resultado de um intenso trabalho, todas elas têm fossa, mas por causa das comunidades de cima as águas, embora limpas, não são mais potáveis.


Flávia tem 23 anos, é a 4ª geração destas famílias, se intitula monitora e repórter comunitária da Associação, atuando junto às crianças em ações de fortalecimento da identidade. Está fazendo uma reportagem sobre este rio Carapitanga, lindo, raso, singelo e transparente, que acolhe essas crianças todas. Antigamente costumavam nele fastear, ou seja, caminhar à noite com tocha e facão, catando cascudo na toca.


Tuto me leva para conhecer o rio em locais diferenciados, onde afunda, onde arrasa, aquele perfume daquelas flores brancas que pendem sobre as águas. Me leva em picadas para conhecer a agro floresta, a quantas anda a construção do restaurante comunitário, a casa de farinha, e tudo o mais que é de bem comum. Me aponta os núcleos das 110 famílias que vivem por lá, ainda separados em clãs, conhecidos pelos nomes de suas matriarcas: pedaço da Dona Adelaide, da D. Benedita, da D. Maria das Dores e assim por diante, porque segundo ele, são as mulheres mesmo que articulam tudo e todos, sendo os homens executores do conhecimento feminino.


No fim dos dias as crianças tão deles queridas aparecem pulando as janelas, saindo de debaixo da cama, detrás da cortina e da porta, povoam nosso quarto inteiro curiosas, querem brincar com Morena – que no final, é branca, branca. Esta aprende atrapalhada que a lanterna impede sua visão no escuro, se desfaz dela para correr no campinho atrás dos vaga-lumes com todos os pequenos. Se familiariza com os insetos que habitam nosso quarto e todo o espaço sideral, já não acha que os pequenos animais olham em perseguição para sua pessoa. Larga o biquíni, o vestido, a bolsinha e corre de calcinha por aí. Tenho visões de relance dela, criança feliz, e as senhoras me tranqüilizam quando não a vejo e fico aflita, dizendo que sempre tem alguém cuidando dela. De fato, já almoçou com Constância e não vai ao rio sem adulto. Passa gritando que vai catar jambo, dar comida para os patos, arrancar mandioca da terra, catar caranguejo no mangue e numa destas me avisa cuidadosa: “mãe, se um camaleão te morder, tome água na frente dele, senão você fica doente e eu não quero”

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